Por Eduarda Vitória Romão

O bairro João Cabral, espaço popular periférico e mais famoso do Juazeiro do Norte, desde cedo possui um histórico que persiste em classificá-lo como um bairro precário e desonrado. Segundo moradores, na década de 80, data que marca o seu início, o local era ponto de rua, o que levou a nomear as suas primeiras habitações como “rua da grota” ou “bairro da grota”. Mesmo assim, a precariedade não impediu o seu povoamento, fazendo com que o bairro passasse a ser povoado majoritariamente por trabalhadores ligados à informalidade.

Dadas as circunstâncias de subalternidade e ao fato de que o bairro possui o maior índice de criminalidade da cidade do Juazeiro, a percepção construída sobre a área se faz presente de forma generalizante e estigmatizante:  associar o bairro com um local periculoso e seus moradores com pessoas criminosas e delinquentes. O João Cabral, sendo terra de conflitos, contrastes, porém, também é considerado o celeiro da cultura popular da região, contendo a maior concentração de grupos de tradição e festejos folclóricos do Cariri. 

Ao conhecer o João Cabral nos deparamos com a vasta riqueza cultural e o acolhimento da população do bairro, com modos de cultura que nele existem, “lugar onde tem de tudo um pouco”: danças, tradições populares, cultura das calçadas, projetos sociais, práticas religiosas de matriz africana, dentre outras. O estereótipo marginal opressor mascara a vivência cultural do local, que alcança os corpos em forma de violência simbólica, já mencionada por Pierre Bourdieu. Tendo em vista a forma de produção de cultura contra-hegemônica presente no bairro, que atua como resistência, e o preconceito social oriundo da má fama do local, a luta também se dá por reconhecimentos alternativos e valorização das minorias nele residentes. Crianças, jovens, adultos, idosos, interseccionam raça, gênero, classe e território, que podem contar histórias do bairro que ainda não conhecemos. 

Personagens atuantes na cultura do reisado ressignificam espaços e a vida de pessoas que habitam o território. Alguns desses atores comunicacionais de resistência, que buscam na arte popular uma saída para mudar realidades, são os mestres de reisado Antônio Evangelista e Raimundo Evangelista. Em entrevista com o mestre Antônio, ele afirma que, por meio do reisado, existe uma riqueza de projetos que servem como incentivos e amparo às crianças carentes do bairro, impedindo que elas entrem na criminalidade. Um deles é o seu próprio projeto, chamado Reisado dos Irmãos.

“É muito importante que o nosso governo crie mais projetos para que a gente possa levar esse projeto para dentro da nossa sede, para acolher muitas crianças, como a gente já acolhe, fazendo trabalhos com elas (…) uma coisa que a gente quer, é tirar eles do mundo do crime e levar todos para dentro da nossa sede, porque se a gente limpar o nosso bairro cada vez mais é melhor ”. (Mestre Antônio, em entrevista, 2021)  

A expressão “limpar” aqui é significativa e discutível, pois se vê no crime um destino “sujo”. Uma “sujeira” poderia também estar associada à própria imagem perigosa e  marginalizada do bairro. Sabemos, entretanto, que a problemática é bem mais profunda. O trabalho social de Mestre Antônio com jovens e crianças é revelador do desejo de criar alternativas para contornar e romper com os estigmas sociais e a desvalorização dos modos diferentes de existência e expressão.

Romper com o discurso hegemônico, em grande parte encampado pela mídia, é escutar as vozes das margens e suas forças criativas. Vozes que surgem além dos imaginários da elite, que rotula mais do que conhece. Escutar o João Cabral é  perceber nas alternativas que o impulsionam para outros futuros quais imagens nos deixam, em que minorias representativas atuam. São essas minorias, a exemplo dos mestres de reisado, que tocam alternativas e tornam o imaginário periférico muito mais complexo do que o estigma social que envolve o local em uma imagem subalterna.