Por Andressa Yare, Elane Abreu e Paulo Junior
No documentário Ôrí, de Raquel Gerber, há diversas passagens em que somos movidos pelas expressões, vestígios, marcas da cultura negra brasileira ao modo diaspórico, estabelecendo conexões com um sentimento de exílio “transatlântico”, em que se quebra um elo existencial com terras africanas e se busca restabelecer e reconhecer traços do que persiste como identitário.
O filme, além de apontar para marcas que insistem documentadas em corpos negros, narra ausências, vazios, perdas que estão intimamente relacionadas ao processo opressor da colonização. E a cor preta, cor da pele e cor do desconhecido, é personagem e imagem que nos interpela e toca em nossa memória, em suas visibilidades e apagamentos históricos. Nesse tocante, pensemos sobre o que Didi-Huberman, autor francês e sem, obviamente, relacionar-se com o conteúdo do documentário, escreveu sobre a “imagem da memória” a partir do cubo ou caixa preta do artista minimalista Tony Smith.
Mas essa imagem de memória foi posta em jogo de modo a produzir um volume a-icônico, uma escultura pintada de preto, como se o preto fornecesse a cor de uma memória que jamais conta sua história, não difunde nenhuma nostalgia e se contenta sobriamente em apresentar seu mistério como volume e visualidade. (DIDI-HUBERMAN, O que vemos, o que nos olha, 2010, p.114-115).
Ousando uma conexão anacrônica, relacionamos “a cor de uma memória que jamais conta sua história” ou a apresentação de um “mistério”, nas esculturas de Smith, com a identidade do povo negro abordada em Ôrí, cuja cor é também enigma e imagem que não conta sua história por completo, sendo dialética em seu desejo inquietante de reconhecimento entre visível e invisível, de ausência que insiste presente. Essa ousadia é operatória e segue o fluxo, sempre desafiador, de conectar imagens ora semelhantes, ora desiguais.
O documentário de Gerber e o texto de Didi-Huberman se fazem em momentos diferentes, não foram pensados como partes que se tocam, que se entendem, mas no real dos fatos eles se observam tacitamente. O documentário é, antes de tudo, um grito ardente e forte. Um grito de presença e de revogação da ausência. Trata-se de trazer à tona a memória. Nesse momento, encontra-se Didi-Huberman, pois o negrume que inicialmente viveria em silêncio, despossuído da sua própria história, passa a contá-la, ressignificando o quilombo, a cidade, a vida.
A origem do nome já demarca toda essa embarcação. Ôrí significa cabeça, vem de origem iorubá, pertencente aos povos da África Ocidental. A cabeça é o lugar, é o deslocamento, cabe a ela fotografar, armazenar e ressignificar as imagens para construir o processo identitário. A navegação no atlântico estruturaliza corpos nas suas distintas habitações, a África matriarca se expande em ambivalências constantes. Esse processo diaspórico causa perda e a identidade passa a ser uma busca visual. Essa mesma imagem que possui o poder da perda – impossibilitando o preto de enxergar o seu próprio reflexo -, tal como a ausência e o vazio citados por Huberman, também é a imagem que resgata e revive, então, a partir disso, vem o encontro precioso do negro com ele mesmo, o autoconhecimento.
É preciso imagem para recuperar a identidade, tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. (GERBER, NASCIMENTO; Ôrí, 1989).
O corpo negro é a caixa preta de Tony Smith que necessita da descoberta e da leitura visual que está além do olhar, está no reencontro com o ôrí, que define o estado de sentimento, de ser, de estar. Ao passo que o olhar do eu no reflexo é dado, o negro que vê também é o negro que olha de volta, sendo assim, a imagem é formulada a partir do outro que navega no eu.
O contato do negro com a terra se torna uma demarcação, um pertencimento, um movimento. O terreiro já fundamenta inicialmente: é preciso o contato dos pés descalços com a terra, é preciso sentir a energia de fora para dentro, curando, reconhecendo, compreendendo. Daí parte o direcionamento do núcleo, nosso núcleo da memória, do descobrimento, do retorno: o quilombo. O quilombo é o encontro entre o anseio pelo retorno do carretel citado por Didi-Huberman e a narrativa transgressora de Beatriz Nascimento, que se move entre a invisibilidade do ser e do imagético que pretende tornar-se visível, portanto, necessita de reaparecimentos constantes.
O quilombo urbano invocado por Ôri é o chamamento da memória, é o fim da história que não se conta, é a dialética da transfiguração, tentando tornar visível o invisível. Nessa dialética somos pretos, somos muitos, somos a percepção do que vemos. Huberman nos fala da morte, do vazio, da ausência que existe todos os dias, das decisões mortíferas do ser, nos conta que morremos quando escolhemos ver a primeira e não a sexta face do cubo, o cubo também morre. Contrariando isso, Ôri fala mais de vida que de morte. No texto visual de Gerber reivindica-se, a todo momento, o direito a não morte, o direito à lembrança, à existência. Didi-Hurberman aponta para as escolhas do ser, suas possibilidades, seu arco de decisões. Gerber é mais dura e aponta para a ausência de decisões que é imposta à pele negra.
“Uma vez por ano a gente encontra um portão aberto e vai” (ÔRÍ, 1989). O ir do filme é poético, mas também é massacre. A poética do texto é acadêmica e, às vezes, excludente. O negrume do crítico de arte é ausência de história, de nostalgia. O negrume da realizadora é o cerceamento da mesma história, é o calar da vivência, o esquecimento, é a ausência forçada. Texto e imagem se intercalam, se veem, se refletem, se encaram. O negrume do texto é observado pelo ser negro do documentário.
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