Por Ana Clara Lobo. Entrevistada: Suewellyn Cassimiro.
Suewellyn, poderia falar um pouco sobre sua biografia e formação? O que te fez se interessar pela temática da sua dissertação “Mulheres negras em jornais: uma análise interseccional dos periódicos O Povo e Diário do Nordeste” e como foi o processo de escrita?
S: Começo salientando que, nesses últimos anos, aprendi que é importante a gente se posicionar socialmente no discurso, situar o nosso lugar de fala. Também é preciso dizer que todo mundo tem lugar de fala, pois todo mundo fala a partir de um lugar social. Fui ensinada por feministas negras como Djamila Ribeiro, Lélia Gonzalez, Carla Akotirene, Patricia Hill Collins e Winnie Bueno que devemos ter responsabilidade discursiva. Eu assumo, assim, total responsabilidade por minha fala. Aproveitando o ensejo, vou apresentar o meu lugar de fala, parte da minha caminhada.
Sou Suewellyn Cassimiro Sales, mulher racializada negra, nordestina, antirracista, contracolonialista, lésbica. Atualmente, tenho 31 anos e sou revisora de textos acadêmicos, jornalista formada e laureada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pesquisadora em comunicação e mestra com honras pela Universidade Federal do Ceará. Eu nasci e cresci no bairro Álvaro Weyne, localizado na periferia da cidade de Fortaleza.
Fui bolsista nas escolas privadas onde estudei e, com as políticas pensadas para a democratização do acesso ao Ensino Superior no Brasil, no Governo Lula, acessei pelo ENEM –Exame Nacional do Ensino Médio uma universidade pública federal, a UFRN. Negra numa família materna de pessoas majoritariamente brancas, conheço, desde pequena, a dor do racismo, as opressões interseccionais e as violências contra nós mulheres negras.
Quanto ao interesse pela temática da dissertação, eu escolhi estudar como as mulheres negras são representadas nos dois principais jornais cearenses por esse tema estar conectado com a minha trajetória. Lembro que, quando criança, as referências jornalísticas do meu pai e da minha mãe eram, principalmente, os jornais O Povo e Diário do Nordeste. Não por acaso, acabaram se tornando referências minhas também. Além disso, no trabalho de conclusão da graduação em Comunicação Social – Jornalismo, que cursei na UFRN, investiguei a representação das mulheres na revista Via-Láctea, a primeira publicação impressa e produzida por mulheres em Natal, no RN, nos anos 1914 e 1915. É bem antiga minha afinidade com a mídia impressa e a pesquisa de gênero.
Como se pode observar, nesta monografia não me atentei ao viés de raça como categoria de análise. Desenvolvi e venho desenvolvendo uma consciência racial a partir da minha primeira experiência como profissional na área do Jornalismo, quando estive comunicadora popular de uma organização feminista. Nesta instituição, contraditoriamente, sofri racismo, classismo, lesbofobia e outras formas de opressão que me conduziram a um processo de racialização enquanto mulher parda, negra. Foi quando decidi que minha pesquisa de mestrado deveria ser, e foi, racializada. Isso tudo me moveu até aqui e é por isso que essa pesquisa me afetou tanto, eu sou uma mulher negra no Brasil, sou uma negra acadêmica.
Em relação ao processo de escrita, ele foi duro, duríssimo. Como optei pela escrevivência de Conceição Evaristo – uma escrita que nasce de dentro, atravessada por experiências de gênero, raça, classe, sexualidade –, realizei uma atividade de compartilhamento de vivências pessoais que também se revelaram e se manifestaram em experiências coletivas, de grupo. Como falei nas Considerações finais da dissertação, olhar para minha experiência de mulher negra e para as experiências das mulheres negras, ao mesmo tempo, me fez sentir raiva, tristeza, desgosto, orgulho, inspiração, potência, fraqueza, medo, força, me fez desacreditar e sonhar profundamente. Enfim, um misto de emoções muito intensas.
Também senti com recorrência um desconforto que vinha da identificação com as injustiças sistêmicas, globais; um sentimento de injustiça que aparecia com a imposição das Imagens de Controle contra as mulheres negras, com a minha identificação com a Jezebel e com a Dama Negra, que insistiram e insistem em hipersexualizar meu corpo e desqualificar a minha formação, assim como fazem com outras mulheres negras. Odiei ver representações negativas sobre nós e amei estudar as perspectivas feministas negras que me ensinaram a desvelar as Imagens de Controle, a matriz de dominação global, em especial em narrativas jornalísticas.
Foi uma pesquisa que, assim como as opressões interseccionais, me atravessou e mexeu muito comigo. Ao final, mesmo com as dores, me senti fortalecida por ter a certeza de que não ando só, de que estou muito bem amparada por nossas ancestrais, inclusive as do futuro, as minhas contemporâneas. Para finalizar a pesquisa e continuar no ambiente acadêmico, me aquilombei, me juntei às minhas e aos meus. Foi uma escolha muito certeira. Por isso, aquilombada estou e aquilombada permanecerei.
Quais memórias ficaram da pesquisa e como elas contribuíram para sua carreira?
S: Me sinto perpassada, negativa e positivamente, por muitas memórias da minha pesquisa de mestrado. Várias delas são recentes e ainda bem presentes em mim. Vou compartilhar algumas, dividindo-as em três eixos, impactos pessoais, impactos intelectuais ou acadêmicos e impactos profissionais.
No que diz respeito aos impactos pessoais, biológicos, minha saúde mental e minha saúde física ficaram extremamente fragilizadas durante esse tempo. Logo após a defesa da dissertação, quando parei para me sentir enquanto pessoa não acadêmica, me vi acometida pela síndrome de Burnout. Cheguei a um nível de esgotamento que me impediu de socializar por um tempo, mais ou menos seis meses. Eu não conseguia desligar da pesquisa, tamanho o envolvimento. E até hoje vivo o rescaldo disso. Percebi que vai levar um tempo pra eu me recompor. Ou que vai levar um tempo pra eu me reconstruir, me reinventar após compreender processos não tão sutis que levam à condição social das mulheres negras no Brasil e no mundo, em grande parte sustentados pela atuação midiática.
Em relação aos impactos intelectuais ou acadêmicos, eles se manifestaram também com os desafios constantes para realizar a pesquisa. Por exemplo, eu sou da turma de 2021 do mestrado em Comunicação da UFC. Tivemos a maior parte das aulas de forma remota. Ficávamos horas a fio sentados em frente a telas – de computador, celular, tablet – assistindo e apreendendo uma infinidade de conceitos e teorias. Socializávamos com colegas somente à distância. Passar por isso, em meio a um período de morte em massa de pessoas, foi extremamente angustiante. Antes que me esqueça, em aulas, congressos e seminários, apesar da aparente boa recepção à pesquisa, eu geralmente passava por uma sabatina inquisitória para justificar o motivo de escolher um referencial teórico-metodológico afrocentrado. Era estafante, bastante exaustivo.
Outro aspecto dificultador foi que não tive acesso a acervos físicos de jornais, a bibliotecas, o que me levou a um corpus de pesquisa oriundo de mídias digitais, ou seja, notícias do OP e do DN presentes apenas em seus portais. Aqui, ao menos, consigo lembrar de um impacto intelectual muito positivo: fui totalmente transformada pelas leituras que realizei, pelas ideias que assimilei. Me sinto pertencente às e com muito orgulho das mulheres negras, das feministas negras, da epistemologia feminista negra – uma alternativa ao conjunto de conhecimentos eurocêntricos; com muito orgulho do feminismo negro – um movimento político, conceitual, intelectual. Essas ideias e essas pensadoras mudaram a minha forma de ver o mundo, de sentir o mundo, de pensar o mundo. Também transformaram o meu modo de conhecer e reconhecer a minha produção acadêmica e a produção de outras mulheres negras.
Já quanto ao impacto profissional, a pesquisa também mudou a forma como penso comunicação, como faço comunicação, como falo de comunicação. Havia uma Suewellyn revisora e jornalista antes da pesquisa e hoje há uma outra, com muito mais consciência racial, política, social; que percebe que precisa realizar, cada vez mais, um trabalho engajado, militante e que, apesar dos percalços e das acusações de identitarismo, se orgulha muitíssimo do que faz e de onde chegou. O que antes me gerava estranhamento e crise – pensar a partir das mulheres negras e com as mulheres negras – se transformou em uma sensação aconchegante de empoderamento e pertencimento.
A proposta inicial da sua dissertação contava com a coleta de 91 textos, 49 do O povo e 42 do Diário do Nordeste. Qual foi o método utilizado para selecionar as matérias mais pertinentes e de relevância em sua pesquisa? Esse processo de seleção e corte afetou a pesquisa?
S: Em 2021, meu corpus inicial era, de fato, composto por 49 textos do O Povo e 42 do Diário do Nordeste, datados de 2003 a 2020, ano em que submeti o pré-projeto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC. Ele foi resultado da pesquisa exploratória com os descritores “mulher negra” e “mulheres negras” nas ferramentas de busca online nos sites www.opovo.com.br e www.diariodonordeste.com.br. Essa etapa exploratória me conduziu a um processo de aprimoramento de ideias, melhorou a minha compreensão sobre o problema de pesquisa e contribuiu para a formulação das hipóteses, que se confirmaram posteriormente.
Neste período, considerei realizar a análise de todos os 91 textos, independentemente de serem ou não assinados pelos jornais, que foram organizados em planilha digital no programa Excel. Vale ressaltar mais uma vez que, nessa época, não tinha acesso a acervos físicos por conta da Pandemia de Coronavírus. Desse modo, tive a ideia de pesquisar por esses descritores, ou palavras-chave, nas “lupas” dos jornais online. Para visualizar muitas dessas notícias na íntegra, foi necessário assinar os jornais OP e DN, pois parte dos textos era de conteúdo pago. Isso demandou mais tempo para finalizar a coleta já que, inicialmente, acessei apenas o conteúdo gratuito disponível.
A outra etapa, realizada mais à frente, foi de natureza descritiva. Nela, descrevi características do corpus – dados quantitativos e qualitativos –, assim como estabeleci relações entre as variáveis – três categorias de análise, quatro metodologias, diversos conceitos e teorias. Com esse intuito, além do conteúdo das matérias jornalísticas, considerei informações como editoria, assinatura, data da publicação, presença de conteúdo audiovisual por tipo – foto e/ou vídeo.
Em 2023, com a saúde física e mental abatidas, busquei novas estratégias para contemplar o corpus da melhor forma possível. A saída encontrada foi considerar no conteúdo apenas textos assinados pelos jornais OP e DN, de modo a identificar sua linha editorial mais explicitamente e, assim, alcançar o objetivo do estudo e responder ao problema de pesquisa. Ao final, o corpus consistiu em 10 textos do O Povo e 18 do Diário do Nordeste, portanto 28 textos, com assinatura da redação e sobre mulheres negras, de 2003 a 2020.
Ressalto que, neste corpus final, identifiquei uma disparidade de tempo nos resultados encontrados: enquanto o primeiro texto achado do jornal O Povo é de 20 de novembro de 2012, a primeira matéria do Diário do Nordeste é de 4 de fevereiro de 2003. Decidi, para não causar prejuízo ao aspecto quantitativo da pesquisa, manter o total de 28 textos. Isso não afetou o resultado final da pesquisa, que obteve êxito nos objetivos definidos e apresentou diversas possibilidades de interpretação dos dados coletados.
Qual a motivação para a escolha de estudar o século XXI em particular? O apagamento histórico de mulheres negras em séculos passados foi um incentivador? Qual seria seu conselho para aqueles que pesquisam datas mais antigas em jornais?
S: Essa é uma pergunta interessante que ninguém havia me feito ainda. Como disse no início dessa conversa, na graduação em Jornalismo, eu realizei uma pesquisa histórica. Nela, investiguei a representação de mulheres – sem considerar aspectos raciais ou interseccionais – em uma revista feminina potiguar publicada no início do século XX, a Via-Láctea. A minha ideia era continuar estudando a história do jornalismo feminino e feminista na UFRN, mas a Pandemia me trouxe de volta para Fortaleza e eu decidi cursar o mestrado na UFC. A linha de pesquisa em que meu projeto se encaixava era a 02, Mídia e Práticas Socioculturais, que estuda as práticas socioculturais e o seu vínculo com a mídia na sociedade contemporânea. Logo, tive que adaptar o projeto para participar da seleção.
Um fato curioso pra mim é que, apesar de achar que estranharia muito essa alteração, percebi que a pesquisa contemporânea na comunicação, pelo menos com a minha temática e com os meus objetos de pesquisa, estava totalmente imbricada com a pesquisa histórica. Digo isso porque identifiquei, na teoria e na prática, que a realidade histórica das mulheres negras não é muito diferente da realidade apresentada em jornais hoje, infelizmente.
Outra coisa é que o apagamento histórico de mulheres negras não foi um incentivador, mas um impeditivo para a realização de outra pesquisa. Idealizei, primeiro, estudar a representação da Tia Preta Simoa em jornais do final do século XX no Ceará. A Preta Simoa foi uma liderança negra que contribuiu com a articulação política da Greve dos Jangadeiros, de 1881 a 1884, que levou ao fim do transporte de negros e negras escravizados para a capital do Ceará, influenciando inclusive a Abolição da Escravidão no Brasil. Uma pauta importantíssima. Fiz buscas na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, mas os resultados foram ínfimos, e me mostraram que houve e há, realmente, um apagamento da história de mulheres negras como Tia Preta Simoa, que até hoje é pouquíssimo conhecida local e nacionalmente.
Para aquelas e aqueles que pesquisam datas mais antigas em jornais, aconselho ter paciência durante as buscas, cuidado e refinamento ao definir os descritores, as palavras-chave, e muita organização ao sistematizar dados, informações, coletas. Sugiro ainda, para quem não conhece, realizar pesquisa histórica de mídia na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, que tem ferramentas fantásticas de busca.
Os jornais têm o poder de nomear fatos sociais que circulam e se estabeleceram como “verdade”. Qual o papel das imagens de controle nessa estereotipização e como pesquisas como a sua podem ajudar a quebrar essas organizações sociais?
S: As Imagens de Controle, uma categoria de análise desenvolvida pela socióloga negra Patricia Hill Collins no livro Pensamento Feminista Negro, foram um aparato teórico-metodológico fundamental para a pesquisa. Essa categoria nos permite abordar os estereótipos utilizados para se referir às mulheres negras na mídia hegemônica. É importante ressaltar que as IC se diferenciam das noções de representação e estereótipo, pois se articulam a partir da interseccionalidade – teoria que defende que não há uma hierarquia de opressões, mas uma colisão de estruturas, uma interação simultânea de avenidas identitárias, conforme aprendi com a pesquisadora negra Carla Akotirene.
Outra coisa é que, quando falo em imagens, não me refiro especificamente a fotografias, a imagens fotográficas, mas a imagens construídas em narrativas textuais jornalísticas, a representações imagéticas. As Imagens de Controle são uma série de conteúdos negativos criados e reproduzidos para nomear a condição social das mulheres negras e culpabilizá-las pela situação de desigualdade extrema em que foram colocadas.
Essas imagens são utilizadas, portanto, para mascarar o racismo, o sexismo, a pobreza e outras injustiças sociais, fazendo com que pareçam normais e partes inevitáveis do cotidiano. E a mídia, assim como os jornais, se apresenta, nesse sentido, como instituição que consolida as Imagens de Controle. Para a pesquisadora e jurista Winnie Bueno, o conjunto de mídia é um dos principais mecanismos de atualização e redefinição de IC de mulheres negras.
Penso que a minha pesquisa pode contribuir com o rompimento desse mecanismo perverso alertando que, apesar da aparente inevitabilidade, naturalidade, o conteúdo negativo recorrente nas narrativas jornalísticas sobre mulheres negras deve ser questionado, refletido; para isso, oferece ferramentas e ideias para ajudar a desvelar esses conteúdos negativos, que são elaborados e reproduzidos com propósitos específicos.
Ainda sobre as colaborações da pesquisa, no último dia 24, véspera de 25 de Julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela, realizei uma palestra na Biblioteca Pública Estadual do Ceará apresentando a minha trajetória acadêmica e os resultados da pesquisa de mestrado. Com alegria, ouvi da professora Kenia Rios, do curso de História da UFC, presente na plateia com duas turmas suas, que ela não conhecia as Imagens de Controle e que já não iria ler jornais da mesma forma.
Mesmo ocupando um alto percentual de participação na universidade, as mulheres negras recebem tratamento inferiorizado nos meios de comunicação brasileiros, solidificado principalmente na utilização das imagens de controle. É notável a presença da “Dama negra”, uma imagem de controle baseada em mulheres negras bem-sucedidas, mas que são percebidas como não maternais e assexuais, sendo culpabilizadas pela desigualdade dos homens negros. Mesmo com seu destaque nos meios de comunicação e prejuízo à sociedade, por que, em sua opinião, as imagens de controle são ignoradas e raramente trabalhadas em estudos amplos?
S: Um adendo importante de ressaltar é que a Dama Negra é considerada não maternal porque não se espera que ela tenha prole própria. Porém, na prática, existe a mammificação do trabalho de profissionais negras, e aí a Dama Negra – a profissional diligente em um ambiente, digamos, menos braçal, mais mental, intelectual – acaba se tornando a atualização da imagem de controle da Mammy. A Mammy é a mãe negra boa, aquela que está sempre disponível, então a Dama Negra se converte na mãe do patrão e/ou da patroa brancos. As Imagens de Controle não são estanques, estão em constante redefinição. E variam em grau, não em tipo. Logo, uma Dama Negra por ser também uma Mammy ou uma Jezebel pode ser considerada uma Dama Negra, e assim por diante.
A categoria das Imagens de Controle, sistematizada por Hill Collins, evidencia que esses conteúdos estereotipados e negativos precisam ser nomeados, combatidos. Antes de ter conhecimento sobre esse assunto, as narrativas jornalísticas sobre mulheres negras me geravam um incômodo que, até então, não conseguia definir ou categorizar. Logo, eu ignorava o conteúdo por desconhecê-lo. Mas há quem o faça por projeto ideológico, por conivência, desinteresse. As coisas estão como estão por vários motivos, e há muitas pessoas que desejam que as mulheres negras permaneçam nas condições em que são colocadas para converter essa desigualdade em privilégios para si e os seus/as suas.
Pensei também em outro motivo, essa categoria teórico-analítica é complexa, mobiliza outras teorias – como a interseccionalidade – e se espera de quem a utiliza engajamento político, ativismo, consciência social, racial, de classe. Nem todo mundo quer ter esse trabalho, esse envolvimento. E as Imagens de Controle partem do pensamento de uma mulher negra. Dentro de espaços acadêmicos, somos vistas como inferiores, subalternas. Além disso, há a ideia de que não devemos nos envolver com a pesquisa, de que a ciência é e deve ser neutra, imparcial.
A ciência não é neutra, ela é eurocêntrica, brancocêntrica, masculina, cis, heteropatriarcal, cristã, voltada ao norte global. E as Imagens de Controle –, que partem do feminismo negro, da interseccionalidade – reivindicam um olhar e um fazer alternativos à ciência, em que as mulheres negras não apenas acessem espaços como possam também pensar, falar, defender suas ideias e teorias a partir do seu ponto de vista, nomeando as suas próprias experiências e sendo reconhecidas como intelectuais, acadêmicas ou não. Essa postura vai de encontro ao posicionamento de grupos hegemônicos, como a mídia. Conhecer e aplicar a categoria das Imagens de Controle é uma escolha profunda, séria, visceral. É necessária e muito desafiadora.
Em sua pesquisa, utiliza-se o recurso da escrevivência, termo cunhado pela escritora Conceição Evaristo. Qual é a principal motivação na adoção deste recurso e qual a importância dele para o feminismo negro?
S: A minha principal motivação para adotar a escrevivência de Conceição Evaristo foi poder ser e me sentir sujeita das minhas próprias narrativas. Ao recorrer à escrevivência, busquei construir um texto mesclando experiências de vida com acontecimentos sociais. Essa forma de escrever, proposta pela linguista e escritora negra brasileira, busca romper com a lógica da opressão e o lugar de subalternidade impostos principalmente contra nós mulheres negras. Por esse motivo, metodologicamente, me impliquei na escrita e inseri minhas percepções sobre o conteúdo considerando que, além de receptora, também era atravessada por essa produção.
E essa não foi a minha primeira experiência com a escrevivência. Ao longo do mestrado, exercitei essa metodologia na escrita e na publicação de artigos, na apresentação de trabalhos, em geral bem avaliados. A escrevivência é sobre narrativas atravessadas por marcadores interseccionais de raça, gênero, classe, e conforme diz Evaristo, é um “lugar de experiência étnica”, é “ter direito a contar as próprias histórias”, é o “movimento de escrita como movimento da própria vida”.
Ele é importante para o feminismo negro porque considera que as mulheres negras devem estar no centro da análise, no centro do debate. A partir da escrevivência, fugimos das nomeações externas, das Imagens de Controle, e nomeamos as nossas próprias experiências. Além disso, pra mim, a escrevivência conversa diretamente com o conceito de autodefinição da Patricia Hill Collins, que é, segundo essa autora, o principal mecanismo de defesa contra as IC da condição de mulher negra. Parafraseando a Winnie Bueno, jurista e pesquisadora negra, a verdade sobre nós, nós mesmas podemos dizer.
Ainda sobre o feminismo negro, quais feministas negras você considera leituras essenciais para aqueles que querem saber mais e/ou estudar e investigar as narrativas jornalísticas sobre mulheres negras presentes em periódicos e meios de comunicação?
S: Para aquelas e aqueles que buscam aprofundar seus conhecimentos em relação às narrativas sobre mulheres negras em meios de comunicação, recomendo fortemente acompanhar a produção da professora Fernanda Carrera, a primeira docente negra que tive na UFRN, autora de artigos fundamentais como: “Algoritmos racistas: uma análise da hiperritualização da solidão da mulher negra em bancos de imagens digitais”, de 2013, escrito em parceria com a professora Denise Carvalho; “A raça e o gênero da estética e dos afetos: algoritmização do racismo e do sexismo em bancos contemporâneos de imagens digitais”, de 2020 e “Para além da descrição da diferença: apontamentos sobre o método da roleta interseccional para estudos em Comunicação”, de 2023.
Sugiro ainda ouvir o Kilombas Podcast, no Spotify ou Google Podcasts. Ele é um programa feito por mulheres negras do Ceará que debate pautas do feminismo negro, do racismo e das desigualdades sociais. Pra mim, ele é um exemplo perfeito de autodefinição colliniana. Inspirado no livro Memórias da Plantação, da escritora portuguesa negra Grada Kilomba, o Kilombas é produzido pelas jornalistas Letícia Feitosa e Alice Sousa, e a estudante de Arquitetura e Urbanismo Leíssa Feitosa. Aproveito pra dizer que a Letícia foi minha colega de mestrado em Comunicação na UFC.
Não ligadas diretamente ao campo da comunicação, mas com produções interdisciplinares também importantes para a área, recomendo a leitura de Lélia Gonzalez, em especial dos artigos “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, de 1984 e “A categoria político-cultural de amefricanidade”, de 1988, assim como de seu livro “Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos”, publicado em 2020; de Winnie Bueno sugiro a leitura do capítulo “Controle, mídia e o Outro: os corpos e os comportamentos de mulheres negras a partir de definições externas”, no livro “Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins”, de 2020; de Patricia Hill Collins, os artigos “Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro”, de 2016 e “Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória”, de 2017, e o livro “Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política de empoderamento”; além da Djamila Ribeiro, nos livros “O que é lugar de fala?”, de 2017 e “Pequeno Manual Antirracista”, de 2019; e por último, mas não menos importante, recomendo a leitura de qualquer texto escrito por Carla Akotirene, seja em seu Instagram, @carlaakotirene, ou em qualquer linha do livro “Interseccionalidade”, publicado em 2021.
Por fim, o que pode ser concluído pela sua pesquisa e o que, em sua opinião, é considerado o ponto de maior relevância para o público leitor?
S: Sobre o problema de pesquisa, que foi como as mulheres negras são representadas nos jornais O Povo e Diário do Nordeste, concluí que houve uma linearidade nas narrativas jornalísticas sobre mulheres negras, de 2003 a 2020 – portanto quase duas décadas – nos jornais O Povo e Diário do Nordeste. Nesse período, e nos textos que analisei, fomos repetidamente representadas ou como pessoas pobres, marginalizadas, exploradas, a exemplo das Imagens de Controle da Matriarca e da Mammy, ou como mulheres que estão em constante, porém lento, avanço, a partir de um discurso de superação, a exemplo da imagem da Dama Negra.
Identifiquei que o espaço dado a nós é muito polarizado, indo do pior cenário socioeconômico a um breve discurso de superação. No final das contas, isso evidenciou que, mesmo que o patamar econômico das mulheres negras sofra alguma alteração positiva, o reconhecimento social será drasticamente menor do que deveria, ou até mesmo não acontecerá, por conta dos diversos atravessamentos identitários. E isso mostrou que notícias que aparentavam ser positivas eram, muitas vezes, negativas. Avaliei, assim, que os jornais O Povo e Diário do Nordeste, nas narrativas do corpus, pouco contribuíram para a superação das desigualdades enfrentadas pelas mulheres negras e reproduziram conteúdos negativos a nosso respeito.
Finalmente, penso que o ponto de maior relevância, ou aquilo que pode ser considerado mais fortemente pelo público leitor, é a compreensão de que há, com essa dissertação de mestrado, uma tentativa sincera e comprometida de fazer uma ciência alternativa, implicada, social e racialmente consciente. Nela, pesquisei comunicação com base no pensamento e nas ferramentas produzidos por mulheres negras, nos incluindo, de fato, no centro do debate. Esse tipo de ação é urgente, necessário. Nós temos, sim, o direito de nomear as nossas próprias experiências, de dizer quem somos, o que queremos. Reafirmo, portanto, nossos saberes, defendendo que temos ainda o direito de acionar nossas próprias especialistas. Mesmo jogadas na lata de lixo da história, como diria Lélia Gonzalez, “o lixo vai falar, e numa boa”. Viva as mulheres negras!
A dissertação de Suewellyn Cassimiro está disponível aqui.
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