Por Elane Abreu
Durante uma pose e outra, mainha e eu trocávamos olhares de admiração! Ao terminar o ensaio, mainha e a fotógrafa dialogaram e depois de alguns dias, outra pessoa do estúdio apareceu lá em casa com as fotos ampliadas e impressas: o ensaio ficou lindo. Mas, à época, nem mainha e nem pai puderam pagar pela produção daquelas imagens. Até hoje lembro de algumas daquelas imagens que espelhavam a minha face, o meu corpo com pouco menos de 10 anos. Em resumo, não ficamos com aquele ensaio fotográfico por não haver pagamento. Assim, as fotos retornaram ao estúdio e de acordo com aquela pessoa, seriam apagadas numa bacia d’água. (BISPO, 2016, p.1)
A ausência de fotografia na construção de memória de uma família repercute de distintas maneiras ao longo da vida. A imagem é “um direito humano”, como propõe Vilma Neres Bispo, e a sua ausência traumática, como narra a pesquisadora em sua dissertação, reverbera em suas ações e vivências enquanto fotógrafa, artista e mulher negra. A fotografia, a imagem, é um dos pilares da memória social, que se constitui também da memória familiar, dos álbuns de família, dos acervos que vão se constituindo da infância à maturidade dos indivíduos. Falar dessas imagens e da construção de referências visuais é um processo de suma importância.
Em sua participação, no dia 26 de agosto de 2020, no encontro do Limbo, Vilma Neres compartilhou algumas experiências e falou sobre a presença que o ato fotográfico teve e continua a ter na sua vida. Habitante de Salvador, é fotógrafa de famílias, ativadora de olhares e memórias afetivas, que um dia lhe foram negadas. Este ofício faz parte de sua própria “escrevivência”, composta também por trabalhos no cinema, na composição da equipe do filme Nana e Nilo (roteiro de Renato Noguera e direção de Sandro Lopes). Para ela, é determinante a autoconsciência para elaborar sua existência no mundo.
“Por isso que eu acredito que me apoiei muito no conceito da escrevivência da Conceição Evaristo. É essa consciência. Eu preciso dessa consciência de que sou uma mulher negra, eu preciso ter a consciência de que vivo numa sociedade racista e como é que eu consigo viver, resistir, na verdade, re-existir mesmo, me fazer existir dentro dessa sociedade”.
Sua dissertação de mestrado, com título Trajetórias e olhares não convexos das (foto)escre(vivências): condições de atuação e de (auto)representação de fotógrafas negras e de fotógrafos negros contemporâneos (2016), expande o conceito de Evaristo nos olhares/trajetórias de dois grandes fotógrafos brasileiros da década de 1970: Lita Cerqueira (1952, Salvador – Bahia) e Januário Garcia (1943, Belo Horizonte – MG). Fotógrafos estes cujos nomes e obras são ocultados nos acervos clássicos da fotografia no Brasil, bem como em fotolivros e outras publicações que constroem referências para a nossa pesquisa fotográfica. A contribuição de Januário e Lita para o acervo visual da cultura brasileira é tão valorosa que faz evidente a relevância social e acadêmica da pesquisa de Vilma, que traz até nós dois mundos fotográficos/vividos e tão pouco mencionados nas universidades. “Januário fotografou muitas capas de discos, artistas famosíssimos, como a Fafá de Belém, Belchior, Caetano Veloso, assim como a Lita também”, expõe Vilma.
Conhecemos capas, mas, que olhares as concebem? O encontro com estas trajetórias faz questionar sob quais prismas podemos olhar a imagem fotográfica e como esta pode ser condutora de discursos necessários ao conhecimento: quem constrói a imagem? Que assujeitamentos e (in)consciências desnuda? No mês marcado por comemorações em torno da fotografia, decorrentes do dia de seu “advento oficial” – 19 de agosto -, é revelador e pujante movermos outros marcos imagéticos, outras histórias, para pensarmos as (in)visibilidades latentes nas escritas sobre o conhecimento fotográfico. É premente transmutar as biografias “oficiais” da fotografia, tornando as autorias negras e suas narrativas de mundo em visíveis e propulsoras (foto)escre(vivências).
Referências
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