Por Pâmela Queiroz
A história oficial da fotografia gira em torno da narrativa europeia que delimita a data de criação e o início do que se entende como primeiros registros. Mundo afora o dia 19/08 é considerado o dia da fotografia e acredito que seja emblemático falar sobre os atravessamentos do fazer fotográfico neste dia. É interessante pensar que as datas existem a partir da decisão de alguém.
Longe do anúncio francês da criação do daguerreótipo, havia um mundo de possibilidades e construções imagéticas que se manifestavam complexamente em diferentes territórios, inclusive no continente africano. A fotografia pode ser um marco, mas ela não é o início nem o fim na construção das imagens. Não digo isso na tentativa de minimizar este lugar, mas sobretudo de entendê-la como um instrumento a ser utilizado a partir dos direcionamentos do olhar de quem produz.
Defendo que a fotografia é uma das invenções mais extraordinárias da história da humanidade que marca transformações profundas na cultura, economia e nas artes. Sendo assim, a minha homenagem à fotografia se constrói de maneira bastante particular, justamente porque a minha relação íntima com ela se iniciou há dez anos e desde então esta linguagem me acompanha nos ciclos e aprendizados sem fim. Um dos maiores ensinamentos que a fotografia tem me apresentado nos últimos anos é a possibilidade de entender o meu olhar como parte de um novo marco imagético do povo negro.
A princípio quero ressaltar que este é um processo construído à várias mãos; a parte principal nesta construção tem sido os olhares e perspectivas, em especial, das mulheres negras. Existem fotógrafas, artistas e pesquisadoras que têm sido paradigmas fundamentais na reconstrução imagética da negritude.
Aproveitando a deixa do último trabalho da cantora estadunidense Beyoncé, assim como os debates adjacentes ao lançamento do filme Black is King produzido pela artista, me chamou atenção um comentário específico que aponta uma construção de possíveis imagens ”estereotipadas” e “criação de uma África caricata” que estaria “perdida no tempo das savanas”. Ao ler este trecho da análise, me transportei para a comunidade quilombola de Catolé na cidade de Potengi – CE, um lugar onde a influência da Beyoncé é quase nula; os videoclipes, coreografias, carros, jóias e todo o glamour hollywoodiano não estão no centro do debate.
Lembrei de quando estive junto à comunidade, durante um ano, na construção de um trabalho chamado Cariri Retinto, que ainda está em movimento, e principalmente recordei com carinho das descobertas que envolviam conversas, olhos e peles pretas; estes eram os artifícios principais para o nascimento de uma fotografia. As partes mais importantes eram os ouvidos atentos que capturavam os sentimentos das memórias guardadas, os olhos ligados em possibilidades presentes e o encontro dos corpos que construíram juntos imagens futuras.
A câmera era apenas um instrumento, ela não determinava o início ou fim da fotografia. Neste meio tempo o acesso à intimidade das pessoas era intermediado pela permissão de utilizar o lençol em que a pessoa dormia como fundo para as fotografias. Acessar estes tecidos, além de me aproximar da intimidade dessas mulheres, me levou a reconhecer uma herança perdida no tempo e deixada – à força – do outro lado do oceano.
As estampas de animais eram artigos pouco encontrados, as peles eram oferecidas a reis e rainhas e conferiam um lugar de grandiosidade aos corpos que os vestiam. Eu sentia constantemente que os tecidos usados no fundo das fotografias se transformavam num painel que conseguia comunicar e entrelaçar elementos ancestrais, à medida que moldam o presente e projetam o futuro.
As imagens são capazes de mudar o que significa ser negro, porque há um fio condutor na necessidade de conhecer o passado, se fortalecer no enfrentamento dos desafios cotidianos ao passo que sonhamos um futuro glorioso.
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