Precisou apagar o sul para enxergar o norte?
Marcela Bonfim

Essa frase, de Marcela Bonfim, publicada em meio à fumaça das queimadas na Amazônia que chegavam a São Paulo, muito me tocou. Era o momento em que a comoção nacional (e internacional) abria os olhos para a Amazônia pelo efeito de imagens que incomodaram o sul do país. O norte ardia, o sul escutava falar que o norte andava mal. Há, nessa única e breve questão de Marcela, muito sobre o que somos e muito sobre o que se reverbera pelo poder das imagens e dos discursos. A Amazônia ganhou visibilidade nos noticiários das últimas semanas, mas isso também nos fala do quanto ainda somos colonizados na perspectiva dos recortes midiáticos. O que se passa de fato no norte do país? Que invisibilidades pairam na região amazônica sobre as quais não temos notícia?

A frase de Marcela, sintética e poderosa, fala de alguém que escolheu Roraima como território de autoconhecimento e como casa. Não à toa, a questão fala de invisibilidade, apagamento, que vem de muito longe e há muito tempo. A Amazônia, que ganha holofotes mundiais, é, por outro lado, território de povos que pouco ou nada conhecemos. É nesta invisibilidade que Marcela toca como fotógrafa e nisso talvez resida sua “ruptura” ou sua “prática decolonial”. São os povos negros da floresta, os povos escuros, por trás da fumaça midiática, que seu olhar e sua vida alcançam. São afroindígenas, remanescentes quilombolas, haitianos, barbadianos, numa variação de tons e encontro de fronteiras que a fotografia, historicamente, negou.

Sobre essa história oficial, podemos citar o cartão Shirley, da Kodak, ao oferecer escalas de referência de cor na indústria da fotografia na década de 1940. Esse cartão assegurava como padrão “normal” os tons da pele clara, no clássico modelo de beleza eurocêntrico. Notemos: pessoas afro-americanas não tinham seus tons de pele reproduzidos fielmente porque a técnica tendia ao total escurecimento de corpos negros.

A técnica também é política. A política também é fotográfica. A fotografia vem historicamente fazendo conhecer outros matizes, muitas vezes não por “decolonizar” aparelhos, mas por chegar a Amazônias não previstas nas indústrias. As faces das diásporas vão emergindo da invisibilidade e inscrevendo na história realidades e identidades há muito tempo turvadas. Nas palavras de Azoilda Trindade, “a invisibilidade é a morte em vida”. “A invisibilidade é a morte em vida”. Isso tem me atingido diretamente: como professora da UFCA, pensadora, interessada nas imagens, nos espaços e existências em coletividade. Atravessada pelas palavras de Azoilda e de Marcela, penso na existência invisível que muitos de nós podemos ter. E há urgência na decisão: morrer ou viver o Cariri? Morrer ou viver no Cariri?

Vejo algo de Amazônia no Cariri quando se sabe de sua origem indígena, da existência de seus povos ancestrais, ainda que apagados. Há algo de Amazônia no Cariri quando sua negritude, suas profundezas, suas comunidades locais, seus povos remanescentes, são pouco conhecidos e ainda não se transformaram nas merecidas fotografias.

A proposta da mesa (com título Imagens Decoloniais) é mover Amazônias, cariris, existências, memórias e imagens.  É convidar ao exercício de enxergar o norte e o Ceará com a força deles e neles também (re)conhecer nosso próprio norte. Como pensar nossas diásporas cearenses? Como as imagens conduzem ao pensamento decolonial a partir do sul do Ceará? Os convidados de hoje, Marcela Bonfim e Rodrigo Lopes, vêm para sugerir algumas direções e emergências. Desejo que minhas/meus alun_s e tod_s aqui presentes consigam ser afetad_s por essas trocas e que elas se atualizem no miúdo político da vida. Gratidão.

Por Elane Abreu
Em 29 de agosto de 2019
Fotografia: Emanoella Belém
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